por Arthur Blade

Milhares de pessoas passeiam pelo Parque do Ibirapuera em São Paulo todos os dias, milhares vão fazer exercícios, levar seus cachorros, levar seus filhos, e muitas vezes nem notam a escultura da foto abaixo. Trata-se de uma cópia em bronze do grupo escultórico Laocoonte que está no Museu Pio-Clementino, no Vaticano, e que foi feita pelo Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo. A estátua está lá desde 1954, quando o parque foi inaugurado.

Pois bem, pessoas passeiam pelo Ibirapuera, muitas até tiram selfies com o Laocoonte se dilacerando de dor, mas a imensa maioria nem faz ideia da grande aventura épica que está por trás desta escultura.

No princípio.

Caio Plínio Segundo (23 – 79), conhecido também como Plínio, o Velho, foi um naturalista romano. Ele é conhecido por ter escrito um grande tratado em 37 volumes chamado: História Natural. Nesta obra ele revela um elevadíssimo grau enciclopédico de conhecimento tratando das mais variadas ciências e artes até então em desenvolvimento. Em uma de suas passagens, no volume 36, ele relata:


“…É o caso do grupo Laocoonte, por exemplo, no palácio do imperador Tito, obra que pode ser considerada preferível a qualquer outra produção da arte da pintura ou da estatuária [de bronze]. É esculpido a partir de um único bloco, tanto a figura principal como as crianças, e as serpentes com suas maravilhosas dobras. Este grupo foi feito em conjunto por três artistas dos mais eminentes, Agesandro, Polidoro e Atenodoro, nativos de Rodes.”


Esta referência era tudo que os estudiosos e artistas da época de Michelangelo dispunham acerca desta estátua. Plínio não relata a época em que foi feita nem tampouco quem a encomendou. Por cerca de 1400 anos o nome Laocoonte ,vinculado ao grupo escultórico, simplesmente desapareceu da história, até que…

1506 – o ano da descoberta de um ícone

No dia 14 de janeiro de 1506, o romano Felice de Fredi, proprietário de um vinhedo próximo das antigas Termas de Tito, ao escavar suas terras para plantio, encontra uma estátua. Nessa época, o auge do Renascimento, a escultura clássica era enormementevalorizada, Felice imediatamente manda chamar Giuliano de Sangallo, arquiteto do Papa Júlio II e principal autoridade em se tratando de antiguidades e sua autenticidade.


É nesse momento que ocorre uma das grandes coincidências da história, quando Giuliano é avisado, em pleno almoço, adivinhem quem estava em sua companhia? Sim, Michelangelo era seu convidado para o almoço daquele dia. Eles então partem em direção ao local da descoberta. Junto deles estava o filho de 11 anos de Giuliano, Francesco da Sangallo, que se tornaria escultor e, sessenta anos depois, iria narrar o evento:


“… Então ele partiu imediatamente. Visto que Michelangelo Buonarroti sempre podia ser encontrado em nossa casa, pois fora contratado para o túmulo do Papa Júlio II, meu pai quis que ele também fosse. Juntei-me ao meu pai e lá fomos nós. Eu desci até onde as estátuas estavam quando imediatamente meu pai disse:
“Esse é o Laocoonte, que Plínio menciona.”


No terreno que foi então largamente escavado, encontraram várias partes do conjunto escultórico, as quais podem ser vistas na foto abaixo:

O Papa Júlio II, um classicista apaixonado.

O valor de uma autêntica antiguidade era altíssimo. O Papa Júlio II, grande admirador da cultura clássica, imediatamente a comprou pela quantia de 4.140 ducados, Felice de Fredi ainda recebeu uma pensão vitalícia de 600 ducados por ano e, ao morrer, em sua lápide é mencionada sua descoberta.

Uma estátua enigmática como uma esfinge.

Como se pode ver, algumas partes estavam faltando. O próprio braço direito de Laocoonte estava ausente, além da mão de um dos filhos e do braço direito do outro, bem como algumas partes das cobras.


Na época, os artistas e demais autoridades debateram sobre como seriam as partes faltantes para se fazer uma reconstituição. Michelangelo sugeriu que o braço direito de Laocoonte estaria virado para trás. Já a imensa maioria, entre eles o próprio Rafael, acreditava que o braço estaria esticado em sinal de grande heroísmo. Em 1510, Bramante, arquiteto do Papa, organiza uma votação entre os principais artistas para decidir se o braço direito está estendido ou inclinado para trás. O primeiro vence e uma cópia é assim feita restabelecendo-se aquelas que seriam as partes faltantes. A gravura
abaixo, de Marco Dente, de cerca de 1515-27, reflete o conjunto sem os acréscimos.

Já nesta outra gravura de Nicolas Béatrizet, de cerca de 1535- 65, constam os acréscimos que se acreditavam existir na obra original, ou que, pelo menos, se aproximavam daquilo que seria a obra primeira:

O impossível acontece

Em 1906 acontece algo que seria absolutamente impossível. Algo que qualquer um, com o mínimo senso de probabilidade, diria ser mais difícil do que ganhar na loteria. Pois bem, em 1906, o arqueólogo e negociante de arte, Ludwig Pollack, entra para a História da Arte como aquele que encontrou o braço direito de Laocoonte. Ele achou o fragmento de braço no terreno de uma construtora perto de onde foram encontradas as partes principais da obra.


Não há detalhes sobre como ele achou esta parte da estátua, o fato que se agrega às improbabilidades é Pollack ter percebido que poderia ser o braço de Laocoonte, numa época em que este assunto estava mais que encerrado. Ou seja, 400 anos após a descoberta do grupo principal, o braço é achado. Mas precisava de análise, ele então doou ao Vaticano para que fosse restabelecido o estudo.

Quatrocentos anos se passaram. 1506 – 1906

Nesses 400 anos, a escultura já havia passado por uma verdadeira saga, já sofrera algumas restaurações, por conta das invasões napoleônicas foi levada para o Louvre como espólio do saque, depois, com a perda da Batalha de Waterloo, voltou para a Itália e, no começo do Séc. XX, estava apresentava-se restaurada e com as partes faltantes acrescentadas à obra original. Então não bastava apenas colocar o braço de Pollack ao lado da escultura original, para ver se era mesmo o braço direito de Laocoonte.

E lá se vão mais 50 anos

Foi somente em 1957 que a direção dos Museus do Vaticano decidiu agregar o braço ao tronco de Laocoonte. Na próxima foto pode-se ver que se encaixam perfeitamente e que a conservação do braço sofreu a ação dos 400 anos que o separaram da obra a que pertencia.

E é por isso que a réplica do Parque do Ibirapuera está com o braço estendido, porque foi feita antes de 1957. E foi somente na década de 1980 que as partes adicionadas foram totalmente removidas e assim a estátua ficou como está agora, só com as partes originais:

A grande dúvida

Nas entrelinhas das biografias de Michelangelo, há quem sustente que foi ele que esculpiu o conjunto escultórico Laocoonte, e que, com seu amigo, Felice de Fredi, combinou de o enterrar, fazer passar a obra por antiguidade, e assim, obter uma grande soma com a venda ao Papa Júlio II que, com certeza, a compraria.


As coincidências não são poucas nem pequenas. Michelangelo estava almoçando com Giuliano da Sangallo quando a notícia da descoberta da escultura apareceu e ele pode ser um dos primeiros a chegar ao local. Depois, quando todos os maiores artistas da época achavam que o braço não encontrado estaria estendido, Michelangelo se levanta e diz que estaria virado para trás, e 450 anos depois percebemos que estava certíssimo.

O Cupido Adormecido

Um outro fato corrobora essa hipótese. Há uma pequena estátua de Cupido Adormecido, que hoje está perdida, esculpida por Michelangelo em 1496, só que ele a envelheceu para passar por antiguidade e a vendeu a um traficante de arte que, por sua vez, vendeu ao Cardeal Riario de San Giorgio. Quando a fraude foi descoberta, o Cardeal não só quis continuar com a estátua como convidou Michelangelo para ir a Roma, onde teria suas primeiras encomendas daquelas que seriam grandes obras-primas da humanidade. Ele estava com 21 anos e essa pequena falsificação, esse fazer uma estátua se passar por antiguidade utilizando-se de artifícios como enterrar para dar aparência de envelhecida, tratar com pequenos arranhões, produzir pequenas partes quebradas, pode ter feito toda a diferença para ele se projetar no universo artístico da época.

A minha própria versão

Laocoonte por Arthur Blade

Michelangelo, por volta de 1506, já era considerado “il divino” por esculturas como Baco, Pietá e David, sua fama já era notória, não
precisaria de dinheiro para se manter, nem muito menos, se tivesse
esculpido ele mesmo o grupo Laocoonte, deixaria de mostrar seu
talento falando a todos que foi o autor.


Então o que pode ter acontecido?


E é aqui que entra minha própria versão da história.


Michelangelo conhecia a descrição do grupo escultórico Laocoonte
feita por Plínio, com certeza teria ficado com isso em mente e logo começaria a conceber como teria sido esta estátua. Michelangelo então, em segredo, começa a esculpir aquela que seria sua primeira composição com três personagens, um verdadeiro virtuosismo em um único bloco de mármore.


No entanto, algo inevitável acontece, quando a obra está terminada, quando está nos pormenores de polir as partes da estátua, uma minúscula fissura no mármore e… e uma parte da obra acidentalmente se quebra. Isso o destrói completamente, jamais ficaria com uma obra que, mesmo bem remendada, não o satisfaria pessoalmente. Ele também sabia que seus inimigos iriam se valer desse detalhe para o caluniar. Além disso, já não seria mais uma estátua concebida em um único bloco de mármore como Plínio tanto enfatizou. Tudo estava acabado.


Ele então elabora um plano audacioso com seu amigo Felice de Fredi, pede para ele quebrar a estátua em algumas partes (Michelangelo jamais conseguiria quebrar ele mesmo uma obra-prima da humanidade), depois desaparecem com algumas pequenas partes, fazem alguns arranhões, envelhecem da melhor maneira possível e enterram no vinhedo de Felice. A continuação da história já sabemos.

A verdade ainda está por ser desenterrada.

A posição dos críticos ainda é controversa, alguns ainda creem que Laocoonte é a estátua grega original com datação incerta; outros dizem ser uma cópia de uma estátua grega em bronze do séc.II a.C. que não chegou até nós; há também quem diga que não se trata de um único bloco de mármore, enfim, a verdade permanecerá pra sempre enterrada.

Michelangelo, o maior gênio falsificador da História da Arte

A minha versão é absolutamente plausível, mármore é um material que se quebra facilmente, Michelangelo, com seu temperamento forte, pode muito bem ter seguido os passos que mencionei.


E se isso realmente aconteceu, Michelangelo nos presenteou com obras-primas geniais como a Pietá, David, o teto da Capela Sistina, o Afresco do Juízo Final, o Moisés e… aquela que é a obraprima máxima da estatuária grega, o conjunto escultórico do Laocoonte. E do alto de toda sua genialidade, Michelangelo sorri por ter convencido a todos que Laocoonte é uma estátua grega, ele se igualou até mesmo aos gregos.


Michelangelo, o maior gênio falsificador da História da Arte.


Por
Arthur Blade

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